sexta-feira, novembro 18, 2005

Parte 5

-- Que você tem?
-- Nada - respondi irritado.
-- Tá irritado?
-- Você vai sair?
-- É aniversário da minha irmã. Eu te falei.
É verdade, ele tinha falado.
-- Você quer vir?
E aí me deu remorso porque ele queria mesmo que eu fosse. Queria mesmo. Ia ficar feliz de aparecer comigo. Fiquei imaginando a mãe dele, a família dele. De onde ele veio.
-- Melhor não - respondi ajeitando a camisa dele (na verdade minha). - Vai lá.
-- Eu volto cedo. Daí a gente podia ver o filme. Senão paga multa.
Fiz que sim. Ele me olhou por um instante e depois saiu. Ele sempre me olhava por um instante antes de sair. Como se estivesse esperando alguma coisa. Eu nem lembro mais se eu só fingia ou se eu não sabia mesmo o que era.

* * *

O cachorro já nem dormia mais entre a gente, era eu que ele abraçava. Mas mesmo com isso tudo, eu avitava pensar nisso tudo, eu estava feliz. E agora isso, esse sujeito da praia. O que foi essa pulga, esse aperto? Agora eu tinha que pensar, eu era obrigado a pensar.

* * *

-- Você tá roubando!
-- O quê? - Eu com a maior cara de cínico. - Imagina!
-- Não tinha um coringa aqui?
Nesse dia estava frio, ele fazendo chocolate quente na cozinha, os pães de queijo no forno. Chamei:
-- Vamos jogar buraco?
Fui eu que ensinei ele a jogar, mas ele achou o jogo chato então resolveu que quem perdesse tinha que pagar uma prenda. Ainda se diz "pagar prenda"?
-- Cadê o coringa? - ele insistiu.
-- Não tinha coringa, é aqui que tem coringa.
-- Ah - ele fez uma cara desapontada.
Às vezes eu deixava ele ganhar, dessa vez ele ganhou de verdade. Mesmo eu roubando o coringa.
-- Você vai ter que... - olhou pra mim. Fez cara de mau. Começou a rir. Ficou sério e fez cara de mau de novo. Não agüentou e riu de novo.
-- Fala logo!
-- Me vencer num duelo de samurai!
-- Quê?!
Agora, que situação ridícula. Eu com quase quarenta anos e fazendo luta de espada com espeto de churrasco, fingindo ser samurai. Nem sei como samurai luta!
-- Oh! - ele se jogou no chão feito morto, a língua pra fora.
-- Venci! Venci!

* * *

-- Que você tem?
-- Ahn? - fiz.
-- Que você tem? - ele insitiu.
-- Nada.
Ficou me olhando, a testa franzida, desconfiado. A testa franzida, os olhos grandes, a unha roxa no pé, o short verde largo, era meu aquele short, a cicatriz de queimado no peito, o cabelo despenteado, o bandeide no dedo.
-- Que que você me olha tanto?
Eu ri.
-- Aconteceu alguma coisa?
Isso foi na cama, ele sentado na ponta da cama, eu encostado na cabeceira. Era uma dessas tardes de sábado.
-- Vem pra cá - disse.
Ele veio. Sentou do meu lado, passei o braço em volta dos seus ombros e ele se recostou um pouco em mim. Ficamos algum tempo olhando pras paredes. Acho que eu lhe fiz um cafuné, não lembro. Talvez conversamos alguma bobagem. Lembro que eu sorri quando ele deitou a cabeça no meu ombro. Eu sei que vendo a estória toda assim, parece óbvio desde o início. Mas pra mim não era. Não no início.
-- Ei, - ele levantou a cabeça para olhar pra mim. - Vamos pedir uma pizza?
-- Claro.

F I M

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