segunda-feira, novembro 28, 2005

Diálogos

-- Eu gosto de diálogos.
-- Ahn?
-- Eu disse que eu gosto de diálogos.
-- Ah - pensou por um instante. - Quê?
-- Diálogos, porra!
-- Que que tem diálogos?
-- Eu gosto!
-- Ah tá.

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-- Então você gosta de diálogos?
-- Foi o que eu disse.
-- Como assim?
-- Como assim o quê?
-- Como assim diálogos?
-- Diálogos, ué. Um fala o outro responde. Diálogos. Não sabe o que é não?

------------XXX------------

-- Eu acho que a gente não combina.
-- Ahn? Por quê?!
-- É que eu gosto de diálogos, compreende?
-- Ah, sei... e?
-- E eu acho que você gosta é de monólogo. Não vai dar certo.
-- Quê?
-- Tchau, foi bom te conhecer.

quinta-feira, novembro 24, 2005

A estante

Empurrou a cadeira até a estante, subiu, ficou na ponta dos pés. Não, ainda não alcançava. Resolveu subir na própria estante. Começou a escalar as prateleiras, andar por andar, evitando os bibelôs e porta-retratos que ficavam na frente dos livros. Ela suba mais e mais alto e suas mãos alcançaram o andar que ela buscava, o livro estava lá, mas subir era tão fácil e ela continuou subindo.

"Estranho" pensou, "a estante parecia menor vista do chão." Mas então ela se deu conta de que esse pensamento era falso: ela nunca enxergou com clareza o final da estante. E já que estava mesmo subindo -- e que subir era tão fácil -- decidiu chegar ao final. Pensou que tinha que haver um final, mas já estava subindo há tanto tempo e nem sinal dele.

Ouviu de repente um barulho no corredor e se assustou porque não era permitido subir na estante. Ela deveria ter usado a escada para alcançar o livro. O barulho ficava mais perto e, olhando para baixo, pensou que não estava assim tão alto. Achou que poderia pular. Hesitou com medo de machucar as pernas, mas os passos no corredor ficavam mais e mais próximos e ela se lembrou da punição e saltou.

Na queda via passar a estante e olhando agora para baixo, notou que não conseguia ver o chão. "Mas deve haver um chão" raciocinou "porque eu vim de lá." Então ela se deu conta de que esse pensamento era falso: ela veio do topo da estante. Mas já que estava mesmo caindo -- e cair era tão fácil -- decidiu cair até o chão, se é que havia um.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Parte 5

-- Que você tem?
-- Nada - respondi irritado.
-- Tá irritado?
-- Você vai sair?
-- É aniversário da minha irmã. Eu te falei.
É verdade, ele tinha falado.
-- Você quer vir?
E aí me deu remorso porque ele queria mesmo que eu fosse. Queria mesmo. Ia ficar feliz de aparecer comigo. Fiquei imaginando a mãe dele, a família dele. De onde ele veio.
-- Melhor não - respondi ajeitando a camisa dele (na verdade minha). - Vai lá.
-- Eu volto cedo. Daí a gente podia ver o filme. Senão paga multa.
Fiz que sim. Ele me olhou por um instante e depois saiu. Ele sempre me olhava por um instante antes de sair. Como se estivesse esperando alguma coisa. Eu nem lembro mais se eu só fingia ou se eu não sabia mesmo o que era.

* * *

O cachorro já nem dormia mais entre a gente, era eu que ele abraçava. Mas mesmo com isso tudo, eu avitava pensar nisso tudo, eu estava feliz. E agora isso, esse sujeito da praia. O que foi essa pulga, esse aperto? Agora eu tinha que pensar, eu era obrigado a pensar.

* * *

-- Você tá roubando!
-- O quê? - Eu com a maior cara de cínico. - Imagina!
-- Não tinha um coringa aqui?
Nesse dia estava frio, ele fazendo chocolate quente na cozinha, os pães de queijo no forno. Chamei:
-- Vamos jogar buraco?
Fui eu que ensinei ele a jogar, mas ele achou o jogo chato então resolveu que quem perdesse tinha que pagar uma prenda. Ainda se diz "pagar prenda"?
-- Cadê o coringa? - ele insistiu.
-- Não tinha coringa, é aqui que tem coringa.
-- Ah - ele fez uma cara desapontada.
Às vezes eu deixava ele ganhar, dessa vez ele ganhou de verdade. Mesmo eu roubando o coringa.
-- Você vai ter que... - olhou pra mim. Fez cara de mau. Começou a rir. Ficou sério e fez cara de mau de novo. Não agüentou e riu de novo.
-- Fala logo!
-- Me vencer num duelo de samurai!
-- Quê?!
Agora, que situação ridícula. Eu com quase quarenta anos e fazendo luta de espada com espeto de churrasco, fingindo ser samurai. Nem sei como samurai luta!
-- Oh! - ele se jogou no chão feito morto, a língua pra fora.
-- Venci! Venci!

* * *

-- Que você tem?
-- Ahn? - fiz.
-- Que você tem? - ele insitiu.
-- Nada.
Ficou me olhando, a testa franzida, desconfiado. A testa franzida, os olhos grandes, a unha roxa no pé, o short verde largo, era meu aquele short, a cicatriz de queimado no peito, o cabelo despenteado, o bandeide no dedo.
-- Que que você me olha tanto?
Eu ri.
-- Aconteceu alguma coisa?
Isso foi na cama, ele sentado na ponta da cama, eu encostado na cabeceira. Era uma dessas tardes de sábado.
-- Vem pra cá - disse.
Ele veio. Sentou do meu lado, passei o braço em volta dos seus ombros e ele se recostou um pouco em mim. Ficamos algum tempo olhando pras paredes. Acho que eu lhe fiz um cafuné, não lembro. Talvez conversamos alguma bobagem. Lembro que eu sorri quando ele deitou a cabeça no meu ombro. Eu sei que vendo a estória toda assim, parece óbvio desde o início. Mas pra mim não era. Não no início.
-- Ei, - ele levantou a cabeça para olhar pra mim. - Vamos pedir uma pizza?
-- Claro.

F I M

quarta-feira, novembro 16, 2005

Parte 4

Não foi assim, de repente. Isso não foi. Isso foi aos poucos. Primeiro o armário, que ele não tinha mesmo muita coisa, então eu ajeitei duas gavetas para ele, "pra não ficar tudo espalhado pela sala". Em pouco tempo ele estava usando as minhas roupas também.
O resto, a cama, isso foi bem aos poucos mesmo. Primeiro de vez em quando, quando estava frio ou por algum pesadelo ou filme de terror.
-- Se pelo menos o cachorro dormisse comigo, - ele dizia - eu não sentia medo.
Mas o cachorro dormia comigo, e ele deitava ao lado do cachorro. Abraçando o cachorro. Primeiro o cachorro.

* * *

É claro que a essa altura ele já tinha a chave. Aliás foi engraçado. Antes só tinha uma chave, ficava em casa ou na portaria. O primeiro a chegar em casa - quase sempre ele - pegava. Então eu fiz uma chave pra ele, peguei a cópia da minha irmã e fiz.
Foi engraçado, eu cheguei e entrei com a chave nova. Ele estava na cozinha, a música alta, nem me ouviu entrar. Estava batendo um bolo.
Fui entregar a chave, assim, de surpresa, ele se assustou, a chave caiu no bolo. Ele fez questão de botar o bolo no forno com chave mesmo.
-- Quem achar fica com a chave nova - ele disse.
Era meu aniversário; quem achou a chave foi ele.

* * *

Domingo de sol a gente passeava com o cachorro. Acho até que foi aí. Não, tenho certeza, foi aí. Domingo de sol na orla. Eu, ele e o cachorro.
-- E aí, garoto?
Olhei, era um cara. Assim, desses nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, sem descrição, normal, feito eu. E o cara falava com ele.
-- Oi Roberto, - ele respondeu - tudo bom?
Aperto de mão, apresentações e "puxa, quanto tempo", "é, pois é" e "mas e aí, tá onde?"
-- Tô morando com ele - apontando pra mim.
-- Ah - fez o cara.
Alguma coisa na expressão do sujeito, não sei bem o que foi, alguma coisa me deixou com a pulga atrás da orelha. Depois eu perguntei, como quem não quer nada. Não, como quem finge que não quer nada mas na verdade quer muita coisa.
-- Era teu colega de faculdade?
Pergunta besta, eu sabia que não era. O cara era mais velho que ele uns dez anos. O cara devia ter a minha idade.
-- Ah não, - riu - era colega da empresa que eu trabalhava antes. Ele mora por aqui.
"Como você sabe?" pensei. Em vez de uma pulga, agora eram duas. Mas eu não ia perguntar, decidi não perguntar, era melhor não saber.
-- Como você sabe?
-- Ahn? - ele fez, distraído.
-- Como você sabe que o sujeito mora por aqui?
-- Ah, é que eu fiquei um tempo na casa dele.
Não lembro o que eu pensei. Só lembro do aperto no peito. Eu não era o primeiro. Eu era o segundo. Eu era pelo menos o segundo.

sexta-feira, novembro 11, 2005

Parte 3

-- Como assim, irmão?
Minha irmã me chama de irmão. Acho engraçado, parece uma crente falando.
-- O quê?
-- Como assim o sujeito se muda pra sua casa?
Não respondi. Não queria ter essa conversa. Eu lembro, eu estava irritado com as perguntas. Se eu já tinha me perguntado isso tantas vezes e não tinha conseguido responder, porque ela achava que.
-- Hein? - ela insistiu.
--- Sei lá. Ele não tem onde ficar.
Isso era verdade mas também era mentira: não era esse o motivo.
-- Então você, como boa alma cristã, botou o cara dormindo no sofá.
-- Não é assim. É só por um tempo. - "Boa alma cristã"? pensei - Ele tá dividindo as despesas - menti.
-- Bom, a vida é sua, a casa é sua, você quem sabe melhor.
Mas no tom de voz ela dizia "a casa é sua, a vida pode até ser sua, mas quem sabe melhor sou eu".
-- Ele é meu amigo. - Outra mentira. Era mentira?

* * *

Entrei em casa. Mesma cena. Sofá, televisão, desenho animado. Mesma cena. O cachorro pula e me lambe as mãos. Ele levanta, se espreguiça, ri. Pára do meu lado, espera o cachorro terminar, o sorriso estampado nos olhos. Diz:
-- Tá com fome?
Não lembro exatamente quando ele resolveu se encarregar do jantar. De repente, tinha jantar. Antes eu não jantava, comia um sanduiche, uma vitamina. Agora nós jantávamos.
-- Ah - fiz que lembrava. Mentira, eu vinha com isso na cabeça o tempo todo. - Eu vou ter que ir à Petrópolis amanhã cedo, resolver umas coisas da empresa.
Levantei a cabeça. Ele me fitava de olhos arregalados. Não arregalados, mas fixos, com atenção. Não consigo descrever, nunca consegui.
-- Daí, - continuei - devo dormir lá, na casa da minha tia. Minha tia tem casa em Petrópolis.
Parei de novo pra tomar fôlego. Ele ainda olhos fixos.
-- Você fica a fim de ir?
Riu, ele riu. Eu lembro, riu o seu riso fácil de criança. Assim, de gente que não esconde felicidade.
-- Ahã.

* * *

Fomos eu, ele e o cachorro. Resolvi o que tinha pra resolver logo. Chovia, um frio absurdo. Chegando na casa da minha tia, as paredes de pedra, uma merda, tudo úmido, mais frio ainda.
Acendi a lareira, peguei todos os três cobertores que achei no armário. Na sala ele no sofá. Sem televisão, assistia o fogo.
-- A gente bem podia ter uns marshmellows, que nem nos fil. Ai, porra!
Eu tinha jogado um cobertor na cabeça dele.

* * *

Não lembro do que conversamos naquela noite, nós sempre conversamos muito. Quer dizer, ele falava muito, eu ouvia e ria muito. Eu ria muito. Mas essa noite, com o vinho, eu falei bastante.
-- Vamos ver as estrelas? - ele chamou.
-- Lá fora? - espiei pela janela. Não chovia mais.
-- É, vamos?
Por que os olhos em mim? Sempre os olhos em mim.
-- Claro.
Tinha uma varanda, peguei um cigarro. Risquei o fósforo. Apagou.
-- Merda.
-- Acabou a caixa?
-- Ahn? - fiz.
-- A caixa de fósforos - apontando. - Acabou?
-- É... - olhei sério pra ele - mas isso não é uma caixa de fósforos.
Ele me olhou sem entender. A cara de "ué". Ninguém faz cara de ué melhor que ele. A gente sentado no chão da varanda - não tinha cadeira, a mobília era uns vasos enormes com plantas. A gente no chão, enrolados cada um num cobertor. Ele de olhos bem abertos, fixos em mim. A expressão de alguém que pela primeira vez vê uma bolha de sabão estourando.
-- E é o quê?
-- Isso - falei em tom de segredo - é uma casa. Uma casa de gnomos.
Botei a caixa no chão de lado, usando o interior pra fazer um telhado.
-- Ah, - mas como os gnomos entram, se não tem porta?
-- Hum.
Rasguei um pedacinho na caixa em forma de uma porta.
-- Pronto.
Ele riu. Eu ri do riso dele. Ele pegou a caixa-casa e colocou com todo o cuidado em um dos vasos, meio escondido pela planta.
-- Será que se a gente ficar aqui bastante tempo, a gente vê o gnomo entrar?
-- Acho que não - respondi. - A casa é nova, ainda vai sair nos classificados antes de algum gnomo vir morar nela.
Piada besta, eu sei, mas funcionou. E enquanto ele ria, eu tentava evitar pensar que na casa da minha tia só tem uma cama.

terça-feira, novembro 08, 2005

Parte 2

Sofia era bacana. Acho até que gostava de mim. Talvez se fosse antes, tivesse dado certo. Não lembro muito do seu rosto, lembro das coxas grossas que ela disfarçava com saias largas. E do riso, sempre gostei de mulheres que riem de verdade, que nem criança.
Naquele dia saí com Sofia. Fomos ao teatro, alguma peça da moda, uma merda, ficava um cara pelado no palco o tempo todo, de quatro. Acho que era pra ser uma vaca.
Antes, em casa, no quarto, eu me arrumava e ele sentado, não: deitado, deitado na minha cama com o cachorro. Eu vendo a roupa no espelho grande que reflete também a cama. Posição estratégica.
-- Põe a camisa verde.
-- Essa tá ruim?
-- Não, mas eu gosto mais da verde.
Botei a verde.
-- Você e a Tânia vão vir pra cá depois?
-- É Sofia.
-- Se você quiser eu saio.
Ele disse isso sem me olhar, parecia distraído, brincando com o cachorro. E não foi nada, nenhum tom de voz, nenhuma inflexão, nada, ainda assim, alguma coisa.
-- Não, não precisa.

* * *

Sofia já tinha estado em casa algumas vezes. Somado, não davam vinte minutos. Eu sempre arrumava um jeito de ser rápido. Nunca gostei de gente na minha casa. Nem meus amigos me visitam muito. Por isso é tudo tão estranho.
-- O cachorro não gosta da sua namorada - ele disse uma vez. Era mentira, quem não gostava era ele.
-- Não é minha namorada.
Um dia inventei um jantar pra ela. Não lembro porque, mas teve um motivo. Preparei um macarrão, que homem só sabe mesmo cozinhar macarrão, deixei tudo pronto e me arrumei. Era pra ele sair. Ele tinha dito que ia sair. Eu tinha dito:
-- Sofia vem jantar em casa amanhã.
Estávamos tomando café da manhã, ele parou o pão com manteiga no meio do caminho e me encarou. Sério.
-- Você tá me comunicando que é pra eu não estar aqui?
Não respondi. Ele, os olhos fixos em mim. Nunca me acostumei com seus olhos.
-- Não precisa nem pedir, - o pão com manteiga retomou o caminho - eu vou sair com uns amigos da faculdade.
Era mentira, eu sabia que era. Ele não tinha amigos da época da faculdade. Ele não tinha amigos.

* * *

Era pra ele sair. Sofia ia chegar às oito. Ele disse que ia ao cinema, sessão das sete e meia, depois pra Lapa ou algum lugar desses, não lembro direito. Sete horas e ele ainda no sofá vendo tv. Sete e vinte ele resolveu tomar banho. Sete e cinqüenta ele saiu do banho. Sete e cinqüenta e cinco o interfone tocou. "Fudeu" pensei. Lembro de ter pensado isso e depois ter me perguntado por quê.
-- Oi Sofia.
-- Olá!
Ele entrou na sala, sem camisa, descalço, com cara de "perdi a hora".
-- Ah, oi Sofia. Você já chegou?
-- É - ela riu - cheguei meio cedo.
-- Eu já tô de saída - ele disse pra mim, olhando pra mim. - Acho que perdi o filme.
-- É, perdeu - eu estava irritado.
Sofia era bastante educada. O tipo da pessoa que acha que todos podem ser amigos e que realmente acredita que estranhos são só amigos que você ainda não conheceu. Foi por isso que ela disse:
-- Ah, se você já perdeu o filme, então fica e janta com a gente.
Ele olhou pra mim.
-- Posso?
Os olhos em mim.
-- Claro.
Não é que o jantar tenha sido uma merda. Não foi. Não de todo. E depois daquele dia eu ainda saí com ela mais umas duas vezes. Ou três, não lembro.

* * *

Tirei os óculos, levantei pra fechar a cortina. Não, espera, ao contrário. Fechei a cortina, deitei e tirei os óculos. Ordem, tudo na vida é uma questão de ordem. Ah sim, apaguei a luz, só então deitei. Estava frio, eu lembro do cobertor. Quase dormindo, enrolado no cobertor. Barulho de leve, nem ouvi. "Quê?"
-- Posso dormir aqui? Tá frio na sala.
Mesmo no escuro adivinhei sus olhos.
-- Claro.
Foi a primeira vez.

domingo, novembro 06, 2005

Parte 1

Eu lembro como começou, disso eu lembro muito bem. Eu estava em casa e a campainha tocou. Eu lembro porque eu estava lavando louça e a campainha tocou e eu com as mãos cheias de sabão e detergente não sai assim tão fácil da mão. Que nem telefone que só toca quando a gente está no banho. Ou cagando. Ou cagando no banho. Será que alguém caga no banho?
-- Quem é?
-- Entrega de pizza.
-- Não pedi pizza.
-- É promocional.
Olho mágico tapado.
-- Não, obrigado.
-- Abre logo, porra!
-- Quem é?
-- Abre!
Abri. Disso eu lembro: fui eu que abri a porta. Disse "abre" e eu abri. Abri e ele entrou, assim, como se não fosse nada.
-- Que tá fazendo? - riu.
Então eu lembrei que estava de avental, ridículo. Avental velho, manchado, com marca de cigarro e eu não ia parar de fumar?
-- Nada - disfarcei, tirando o avental - que você quer?
-- Vim ver aquela parada.
Não, espera, não foi isso que ele disse. Ou foi? Não sei, isso tem tanto tempo. Minha memória sempre foi ruim. Quando era criança vendia na farmácia um memoriol, sempre quis comprar. Enfim, ele deve ter dito algo como:
-- Vim pegar as coisas.
Algo assim, não lembro. Lembro que ele estava de chinelo e a calça dobrada pra cima e a unha roxa no pé que sempre me deu nojo. Não nojo, nervoso, sabe? Aquela sensação estranha na espinha.
-- Ah tá. Tá meio que separado, tudo.
Mas ele já estava sentado no sofá, contole remoto na mão, o cachorro no colo, nem ouviu.
-- Quê?
-- Nada - sentei ao seu lado.

* * *

-- E aí?
Ele já estava acordado. Sete horas da manhã, que horas esse puto acordou? O controle da tv na mão, um desenho animado qualquer, ele rindo que nem criança. Disso eu lembro. Que nem criança. "Uma criança", pensei.
-- Tá com fome?
-- Ahã.
Leite, café, pão, manteiga, não, manteiga não, eu não comia manteiga antes. Talvez um iogurte, quem sabe?
-- Tem uma toalha aí, pra eu tomar um banho?
-- Claro.
Peguei a toalha azul, aquela das visitas. Impressiona à beça, super macia, mas não enxuga nada, parece plástico aquela porra.
-- Me empresta uma camisa? Te devolvo depois.
-- Claro.
Abri o armário, ia abrir a gaveta - melhor camiseta, vai que ele não devolve depois? - ele puxou um cabide.
-- Pode ser essa? - a listrada, nova, presente da Tina. Tinha usado uma vez só.
-- Claro.

* * *

"Abre logo, porra". Como assim "abre logo, porra"? Se fosse depois, mas antes? A gente não era amigo. Conhecidos, colegas, vai lá, mas "abre logo, porra"? Eu fico pensando nisso, às vezes. Por causa disso eu não entendo. Parece que. Parece que ele já sabia. Será que sabia? Não podia saber. Não da torta, da chave, da caixa de fósforos, do samurai. Não da caixa de fósforos.

* * *

-- Ajuda aqui.
Entrei em casa bufando, já tinha me acostumado com ele. Com o desenho animado sempre na tv. Com mais um, além do cachorro, pulando em mim quando chegava em casa. Ele pulava em mim. Não literalmente, claro. Só às vezes literalmente.
-- Ei, ajuda aqui.
-- Porra, isso é pesado!
"Não brinca" pensei.
-- Que tem aí dentro?
-- Livros.
-- Quê?
-- Livros.
-- Mas... todos iguais?
E ele já sentado no chão, a caixa aberta, os livros na mão. Eu ri.
-- É, todos iguais.
Olhou pra cima, fez cara de "ué". Os olhos em mim (com isso eu nunca me acostumei).
-- Pra quê tanto livro igual?
-- É da empresa. Sobrou. Quer um?
Ele de novo no sofá, controle remoto, desenho animado, cachorro. Joguei um livro na cara dele.
-- Pára com isso, porra.
Eu ri.
-- Que que você tá tão feliz? - perguntou. - Arrumou mulher, é?
Era.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Musik

O meu chapéu tem três pontas,
tem três pontas o meu chapéu.
Se não tivesse três pontas,
não seria o meu chapéu.

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Eu adoro essa música, vai entender porque... Ela vem volta e meia na minha cabeça estranha e pra mim tem mil significados lindos. Mentira, tem só uns poucos significados, todos lindos.

Mas não é estranho como uma música boba pode significar tanto?