quarta-feira, novembro 16, 2005

Parte 4

Não foi assim, de repente. Isso não foi. Isso foi aos poucos. Primeiro o armário, que ele não tinha mesmo muita coisa, então eu ajeitei duas gavetas para ele, "pra não ficar tudo espalhado pela sala". Em pouco tempo ele estava usando as minhas roupas também.
O resto, a cama, isso foi bem aos poucos mesmo. Primeiro de vez em quando, quando estava frio ou por algum pesadelo ou filme de terror.
-- Se pelo menos o cachorro dormisse comigo, - ele dizia - eu não sentia medo.
Mas o cachorro dormia comigo, e ele deitava ao lado do cachorro. Abraçando o cachorro. Primeiro o cachorro.

* * *

É claro que a essa altura ele já tinha a chave. Aliás foi engraçado. Antes só tinha uma chave, ficava em casa ou na portaria. O primeiro a chegar em casa - quase sempre ele - pegava. Então eu fiz uma chave pra ele, peguei a cópia da minha irmã e fiz.
Foi engraçado, eu cheguei e entrei com a chave nova. Ele estava na cozinha, a música alta, nem me ouviu entrar. Estava batendo um bolo.
Fui entregar a chave, assim, de surpresa, ele se assustou, a chave caiu no bolo. Ele fez questão de botar o bolo no forno com chave mesmo.
-- Quem achar fica com a chave nova - ele disse.
Era meu aniversário; quem achou a chave foi ele.

* * *

Domingo de sol a gente passeava com o cachorro. Acho até que foi aí. Não, tenho certeza, foi aí. Domingo de sol na orla. Eu, ele e o cachorro.
-- E aí, garoto?
Olhei, era um cara. Assim, desses nem alto nem baixo, nem magro nem gordo, sem descrição, normal, feito eu. E o cara falava com ele.
-- Oi Roberto, - ele respondeu - tudo bom?
Aperto de mão, apresentações e "puxa, quanto tempo", "é, pois é" e "mas e aí, tá onde?"
-- Tô morando com ele - apontando pra mim.
-- Ah - fez o cara.
Alguma coisa na expressão do sujeito, não sei bem o que foi, alguma coisa me deixou com a pulga atrás da orelha. Depois eu perguntei, como quem não quer nada. Não, como quem finge que não quer nada mas na verdade quer muita coisa.
-- Era teu colega de faculdade?
Pergunta besta, eu sabia que não era. O cara era mais velho que ele uns dez anos. O cara devia ter a minha idade.
-- Ah não, - riu - era colega da empresa que eu trabalhava antes. Ele mora por aqui.
"Como você sabe?" pensei. Em vez de uma pulga, agora eram duas. Mas eu não ia perguntar, decidi não perguntar, era melhor não saber.
-- Como você sabe?
-- Ahn? - ele fez, distraído.
-- Como você sabe que o sujeito mora por aqui?
-- Ah, é que eu fiquei um tempo na casa dele.
Não lembro o que eu pensei. Só lembro do aperto no peito. Eu não era o primeiro. Eu era o segundo. Eu era pelo menos o segundo.

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