sexta-feira, novembro 11, 2005

Parte 3

-- Como assim, irmão?
Minha irmã me chama de irmão. Acho engraçado, parece uma crente falando.
-- O quê?
-- Como assim o sujeito se muda pra sua casa?
Não respondi. Não queria ter essa conversa. Eu lembro, eu estava irritado com as perguntas. Se eu já tinha me perguntado isso tantas vezes e não tinha conseguido responder, porque ela achava que.
-- Hein? - ela insistiu.
--- Sei lá. Ele não tem onde ficar.
Isso era verdade mas também era mentira: não era esse o motivo.
-- Então você, como boa alma cristã, botou o cara dormindo no sofá.
-- Não é assim. É só por um tempo. - "Boa alma cristã"? pensei - Ele tá dividindo as despesas - menti.
-- Bom, a vida é sua, a casa é sua, você quem sabe melhor.
Mas no tom de voz ela dizia "a casa é sua, a vida pode até ser sua, mas quem sabe melhor sou eu".
-- Ele é meu amigo. - Outra mentira. Era mentira?

* * *

Entrei em casa. Mesma cena. Sofá, televisão, desenho animado. Mesma cena. O cachorro pula e me lambe as mãos. Ele levanta, se espreguiça, ri. Pára do meu lado, espera o cachorro terminar, o sorriso estampado nos olhos. Diz:
-- Tá com fome?
Não lembro exatamente quando ele resolveu se encarregar do jantar. De repente, tinha jantar. Antes eu não jantava, comia um sanduiche, uma vitamina. Agora nós jantávamos.
-- Ah - fiz que lembrava. Mentira, eu vinha com isso na cabeça o tempo todo. - Eu vou ter que ir à Petrópolis amanhã cedo, resolver umas coisas da empresa.
Levantei a cabeça. Ele me fitava de olhos arregalados. Não arregalados, mas fixos, com atenção. Não consigo descrever, nunca consegui.
-- Daí, - continuei - devo dormir lá, na casa da minha tia. Minha tia tem casa em Petrópolis.
Parei de novo pra tomar fôlego. Ele ainda olhos fixos.
-- Você fica a fim de ir?
Riu, ele riu. Eu lembro, riu o seu riso fácil de criança. Assim, de gente que não esconde felicidade.
-- Ahã.

* * *

Fomos eu, ele e o cachorro. Resolvi o que tinha pra resolver logo. Chovia, um frio absurdo. Chegando na casa da minha tia, as paredes de pedra, uma merda, tudo úmido, mais frio ainda.
Acendi a lareira, peguei todos os três cobertores que achei no armário. Na sala ele no sofá. Sem televisão, assistia o fogo.
-- A gente bem podia ter uns marshmellows, que nem nos fil. Ai, porra!
Eu tinha jogado um cobertor na cabeça dele.

* * *

Não lembro do que conversamos naquela noite, nós sempre conversamos muito. Quer dizer, ele falava muito, eu ouvia e ria muito. Eu ria muito. Mas essa noite, com o vinho, eu falei bastante.
-- Vamos ver as estrelas? - ele chamou.
-- Lá fora? - espiei pela janela. Não chovia mais.
-- É, vamos?
Por que os olhos em mim? Sempre os olhos em mim.
-- Claro.
Tinha uma varanda, peguei um cigarro. Risquei o fósforo. Apagou.
-- Merda.
-- Acabou a caixa?
-- Ahn? - fiz.
-- A caixa de fósforos - apontando. - Acabou?
-- É... - olhei sério pra ele - mas isso não é uma caixa de fósforos.
Ele me olhou sem entender. A cara de "ué". Ninguém faz cara de ué melhor que ele. A gente sentado no chão da varanda - não tinha cadeira, a mobília era uns vasos enormes com plantas. A gente no chão, enrolados cada um num cobertor. Ele de olhos bem abertos, fixos em mim. A expressão de alguém que pela primeira vez vê uma bolha de sabão estourando.
-- E é o quê?
-- Isso - falei em tom de segredo - é uma casa. Uma casa de gnomos.
Botei a caixa no chão de lado, usando o interior pra fazer um telhado.
-- Ah, - mas como os gnomos entram, se não tem porta?
-- Hum.
Rasguei um pedacinho na caixa em forma de uma porta.
-- Pronto.
Ele riu. Eu ri do riso dele. Ele pegou a caixa-casa e colocou com todo o cuidado em um dos vasos, meio escondido pela planta.
-- Será que se a gente ficar aqui bastante tempo, a gente vê o gnomo entrar?
-- Acho que não - respondi. - A casa é nova, ainda vai sair nos classificados antes de algum gnomo vir morar nela.
Piada besta, eu sei, mas funcionou. E enquanto ele ria, eu tentava evitar pensar que na casa da minha tia só tem uma cama.

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