quarta-feira, outubro 24, 2007

Rotina

Ele olha o relógio na parede. Cinco horas, é hora. Desliga a televisão, apaga a luz e acende o abajur da escrivaninha. A escrivaninha ainda arrumada, como a deixara ontem e antes de ontem e antes de antes de ontem. Os papéis em branco do lado direito, os escritos o lado esquerdo, no centro a máquina. No canto, ele põe a garrafa térmica e o copo. Puxa a cadeira com um gemido que é quase um suspiro.

Ele é velho, lhe disseram que está velho. Não precisava que dissessem, ele sente em seus ossos que doem, nas mãos que tremem, nos olhos que precisam de cada vez mais luz para ver cada vez menos. Ele é velho mas sabe que ainda não terminou. Talvez hoje.

Senta-se diante da máquina e arruma o papel ainda em branco no mesmo gesto mecânico de tanto tempo. Ajeita no rosto os óculos e toma um gole do café preto. Suas mãos não tremem mais; a máquina é o seu lugar. Cada página escrita é posta na pilha do lado esquerdo. Ele escreve porque precisa, porque entendeu há anos que é o que deve fazer, porque ele é o único que conhece a estória, a verdadeira estória. Ele escreve para que a estória não morra com ele.

quarta-feira, outubro 17, 2007

23/04

Não é que estivesse tão escuro; não estava. Era noite de lua e as árvores são já bastante esparsas naquela área. Ainda assim ele não viu, e foi só quando ouviu o riso desvarairado e sentiu em si o hálito podre que deu pela presença do demônio. Ainda tentou fugir, mas então já era tarde e ele era um cavalo. Não soube do que aconteceu depois, e foi só quando mais tarde lhe contaram o ocorrido que tomou ciência de tudo e se pôs a tremer e desesperar. Os caminhos do cavalo não é possível saber. Há quem jure ter ouvido sons de galope, mas esses foram moradores dos ermos e esses são um povo imaginativo com crenças no sobrenatural e portanto não se pode lhes dar crédito.

Então o cavalo apareceu na praça. Toda vila tem uma praça onde os velhos vão durante o dia e os jovens vão durante a noite. Os jovens essa noite eram poucos e se espalhavam aos pares pelas sombras. Assim foi, que apenas a menina viu tudo quando aconteceu. Viu o cavalo que coiceava chutando o ar, ensandecido como sem ver por onde ia, a galope pelas ruas de terra batida. Viu, jura que viu, os olhos de fogo da besta e todos sentiram o cheiro do enxofre. Viu a lua aparecer e sentiu lhe gelarem os ossos ao ouvir o uivo, aquele uivo medonho de besta ferida. E o uivo vinha da praça, do coreto da praça. Então foi o caos e todos corriam e todos gritavam; namorados se tropeçavam na pressa da fuga e a menina, que estava na praça para que sua irmã não ficasse falada, se viu de repente só. E é por isso que só a menina viu aquele animal gigantesco surgir, como que do nada, no coreto da praça da cidade. E foi só ela que viu o homem que nele montava, e era o homem quem uivava. Como se perseguisse o cavalo, o animal monstruoso de um pulo desceu do coreto e saiu desabalado pelas ruas, sempre com aquele homem a uivar em seu lombo.

A madrugada se passou em um silêncio que não parecia natural e a manhã veio encontrar a cidade amedrontada. Janelas e portas cerradas e o povo assustado espiando as ruas pelas frestas das madeiras. E pelas frestas viram o cavalo, já não mais um cavalo, agora de novo só um homem. O homem caminhava pela cidade trêmulo, trôpego como se estivesse bêbado. Por fim, vendo que o perigo passara, as pessoas sairam às ruas e lhe ofereceram água e uma cadeira à sombra. Disseram que ele se sentasse e que contasse sua estória. Mas o homem estava cansado e dizia coisas desconexas e foi só com a ajuda da menina que se descobriu a verdade. O homem que uivava era o próprio Jorge a quem chamam santo. Com sua montaria fantástica, ele desceu de sua casa que fica no céu para derrotar o demônio no cavalo. Disseram então na cidade que o santo os salvara a todos, e aquele dia recebeu seu nome e é um dia de júbilo e salvação.