quarta-feira, fevereiro 27, 2008

A rainha dos tritões

Seguindo a rua dos tritões
pra cima temos o chafariz
e pra baixo, além das lojas,
encontra-se a meretriz.

Com as unhas vermelhas
e sotaque afrancesado
ela espera paciente
um homem pra ser amado.

E amado é eufemismo,
que isso fique entendido,
porque o homem na verdade
quer mesmo é ser fudido.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

África (um conto sem propósito)

--- Você vai pra África?
Em pé ao meu lado, um menino de uns dez anos me encarava. Estava num desses cafés da moda com um casal de amigos, eu tinha acabado de mencionar que, sim, eu ia passar as festas de fim de ano na África com uma amiga.
--- Você vai pra África? -- o menino repetiu.
Era louro e tinha uma pequena cicatriz na testa.
--- Vou.
--- Meu pai tá na África -- ele disse. Tinha um ar feroz de criança que aprende cedo a se defender sozinha, e que contrastava com o azul vivo de seus olhos e o vermelho de sua boca.
--- Ah, que bacana.
--- É, ele é caçador. Ele caça tigre, leão, elefante, ele atira muito bem. Ele vai me ensinar a atirar também e aí eu vou caçar com ele.
--- Mas você não é muito novo pra caçar? Quantos anos você tem? -- perguntei.
--- Nove. Você tem medo de leão?
--- Eu tenho, você não tem?
--- Eu não, eu sou muito corajoso. Que nem meu pai.
Com a mão direita o menino traçava desenhos invisíveis na mesa enquanto falava. Parecia um pouco tenso. De vez em quando olhava para trás, na direção de um rapaz louro que falava ao celular; um irmão mais velho, talvez.
--- Se você achar meu pai lá, você diz pra ele voltar? -- ele pediu, com os olhos baixos, fixos na mesa.
--- O seu pai?
--- É, ele é que nem meu irmão lá -- apontou pro rapaz ao celular, -- só que é mais velho.
Levantou o rosto e me olhou.
--- Pede?
--- Peço.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Velha senhora - parte 4

Saí da casa da velha senhora levando comigo suas chaves. Não podia deixar seu corpo ali sozinho. Fui até a delegacia mais próxima e contei todo o ocorrido, desde minha saída de casa até o caos final. É claro que não acreditaram em mim, eu também não acreditaria se não tivesse acontecido comigo. Mostrei-lhes o ovo e me disseram que era só uma pedra. Com a minha insistência consegui que dois policiais me acompanhassem até a casa para ver o corpo. O cheiro de queimado já havia passado por completo, o que não me surpreendeu já que levei algumas horas para convencer a polícia. O que me surpreendeu foi o que eu vi no último quarto. Toda a fuligem, toda a fumaça havia sumido. O quarto estava limpo, como se nada houvesse acontecido. No chão, caída no mesmo lugar onde a havia visto, estava o corpo da velha. Não estava mais retorcido e negro de cinzas como antes. Em lugar disso, uma poça de sangue viscoso empapava seu vestido. Ao seu lado, uma pequena faca com um pássaro vermelho de asas abertas no cabo tinha a lâmina suja de sangue.
-- O que é isso? - me perguntaram os policiais. - Onde estão os sinais do fogo? Essa senhora foi assassinada!
-- Foi a fênix - eu disse. Estava em pânico. - Não fui eu!
Na delegacia me prenderam como suspeito. Encontraram minhas digitais na faca. Disseram que foi crime hediondo, um assassinato por motivo fútil. Pensaram que a matei pela pedra. A pedra vermelha - o ovo da fênix - foi coletado como evidência, deve estar arquivado em algum lugar da delegacia. Todo dia eu rezo para que meu julgamento venha logo. Sei que vou ser condenado, não me importa, só quero sair daqui, desta delegacia. Só quero sair daqui antes que o ovo choque, antes que a fênix renasça.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Velha senhora - parte 3

--- E então? -- ela perguntou. -- Quer saber como eu sei?
Tomávamos o chá em silêncio e eu buscava desesperadamente um modo de ir embora sem parecer grosseiro. Eu estava realmente desconfortável e não queria mais saber deste assunto. Mas a velha insistia.
--- Quer saber como eu sei que o ovo da fênix é vermelho e duro e frio como uma pedra?
Tive receio de olhar para ela; sabia que ela estaria sorrindo. Imaginei que talvez ela farejasse meu medo e confusão como certos animais. Fiz que sim lentamente com a cabeça.
--- Ótimo, eu sabia que sim -- deu um tapinha satisfeito nos joelhos. -- Vamos -- disse, pondo-se de pé.
Olhei para ela aturdido.
--- Onde? -- perguntei.
--- Ver o ovo da fênix.
Incapaz de desobedecer, me levantei em silêncio e a segui. A velha me conduziu por um corredor decorado com quadros mostrando os mais diversos tipos de aves e que me pareceu mais comprido do que o pequeno apartamento fazia supor. Comecei a sentir um cheiro de queimado que crescia conforme avançavamos em direção ao final do corredor. Junto com o cheiro me atacou uma forte dor de cabeça que parecia também aumentar a cada passo. Os estranhos pássaros nas pinturas pareciam me fitar com curiosidade. Ao final, em um nicho na parede, um pequeno pássaro empalhado me encarava com ar feroz. Em frente ao nicho havia uma porta fechada com várias trancas. O cheiro de queimado era intenso e percebi que vinha do quarto fechado. Minha cabeça latejava e senti a boca seca. A velha senhora virou-se pra mim e sorriu mais uma vez. Sem dizer palavra, sacou um molho de chaves e abriu as trancas da porta, uma por uma. Tentei lhe dizer que tinha desistido, que não queria mais ver nada, mas minha voz não saía. Eu suava, estava muito quente agora, e a dor me atordoava. Quando ela abriu a última tranca, a porta se escancarou. O quarto estava em chamas, o fogo cobria tudo, e em um canto estava um pequeno pássaro vermelho. Digo vermelho porque foi a cor que vi, na verdade parecia que o próprio pássaro era feito de fogo. O pássaro virou-se na direção da porta e seus olhos negros pousaram em mim e na velha. Então, abriu as asas que estavam cobertas de chamas, eram como que feitas de chamas, e voou na direção da porta, na nossa direção. Com o vôo as chamas do quarto se agitaram. Uma grande lufada de ar incrivelmente quente me atingiu e por alguns segundos foi impossível manter meus olhos abertos. Ainda de olhos fechados consegui cambalear de volta a sala, minha cabeça doía e pequenos círculos vermelhos e verdes dançavam em frente aos meus olhos, mesmo fechados. Me joguei no sofá e caí desmaiado.
Não sei por quanto tempo fiquei desacordado. Quando recobrei os sentidos, o cheiro de queimado vinha ainda forte do fundo do corredor. Olhei em volta à procura da velha, mas eu estava sozinho na sala. Segui cauteloso pelo corredor até o últmo quarto. O calor ali era intenso, a um canto vi o que parecia um corpo deformado pelo fogo. Imaginei que seria a velha. No centro do quarto, uma pequena pedra vermelha parecia intacta em meio à confusão de cinzas e carvão. Toquei-a com a ponta do sapato, sentindo o sapato em seguida com a mão: a pedra estava fria. Peguei-a com cuidado e a guardei no bolso.