domingo, novembro 06, 2005

Parte 1

Eu lembro como começou, disso eu lembro muito bem. Eu estava em casa e a campainha tocou. Eu lembro porque eu estava lavando louça e a campainha tocou e eu com as mãos cheias de sabão e detergente não sai assim tão fácil da mão. Que nem telefone que só toca quando a gente está no banho. Ou cagando. Ou cagando no banho. Será que alguém caga no banho?
-- Quem é?
-- Entrega de pizza.
-- Não pedi pizza.
-- É promocional.
Olho mágico tapado.
-- Não, obrigado.
-- Abre logo, porra!
-- Quem é?
-- Abre!
Abri. Disso eu lembro: fui eu que abri a porta. Disse "abre" e eu abri. Abri e ele entrou, assim, como se não fosse nada.
-- Que tá fazendo? - riu.
Então eu lembrei que estava de avental, ridículo. Avental velho, manchado, com marca de cigarro e eu não ia parar de fumar?
-- Nada - disfarcei, tirando o avental - que você quer?
-- Vim ver aquela parada.
Não, espera, não foi isso que ele disse. Ou foi? Não sei, isso tem tanto tempo. Minha memória sempre foi ruim. Quando era criança vendia na farmácia um memoriol, sempre quis comprar. Enfim, ele deve ter dito algo como:
-- Vim pegar as coisas.
Algo assim, não lembro. Lembro que ele estava de chinelo e a calça dobrada pra cima e a unha roxa no pé que sempre me deu nojo. Não nojo, nervoso, sabe? Aquela sensação estranha na espinha.
-- Ah tá. Tá meio que separado, tudo.
Mas ele já estava sentado no sofá, contole remoto na mão, o cachorro no colo, nem ouviu.
-- Quê?
-- Nada - sentei ao seu lado.

* * *

-- E aí?
Ele já estava acordado. Sete horas da manhã, que horas esse puto acordou? O controle da tv na mão, um desenho animado qualquer, ele rindo que nem criança. Disso eu lembro. Que nem criança. "Uma criança", pensei.
-- Tá com fome?
-- Ahã.
Leite, café, pão, manteiga, não, manteiga não, eu não comia manteiga antes. Talvez um iogurte, quem sabe?
-- Tem uma toalha aí, pra eu tomar um banho?
-- Claro.
Peguei a toalha azul, aquela das visitas. Impressiona à beça, super macia, mas não enxuga nada, parece plástico aquela porra.
-- Me empresta uma camisa? Te devolvo depois.
-- Claro.
Abri o armário, ia abrir a gaveta - melhor camiseta, vai que ele não devolve depois? - ele puxou um cabide.
-- Pode ser essa? - a listrada, nova, presente da Tina. Tinha usado uma vez só.
-- Claro.

* * *

"Abre logo, porra". Como assim "abre logo, porra"? Se fosse depois, mas antes? A gente não era amigo. Conhecidos, colegas, vai lá, mas "abre logo, porra"? Eu fico pensando nisso, às vezes. Por causa disso eu não entendo. Parece que. Parece que ele já sabia. Será que sabia? Não podia saber. Não da torta, da chave, da caixa de fósforos, do samurai. Não da caixa de fósforos.

* * *

-- Ajuda aqui.
Entrei em casa bufando, já tinha me acostumado com ele. Com o desenho animado sempre na tv. Com mais um, além do cachorro, pulando em mim quando chegava em casa. Ele pulava em mim. Não literalmente, claro. Só às vezes literalmente.
-- Ei, ajuda aqui.
-- Porra, isso é pesado!
"Não brinca" pensei.
-- Que tem aí dentro?
-- Livros.
-- Quê?
-- Livros.
-- Mas... todos iguais?
E ele já sentado no chão, a caixa aberta, os livros na mão. Eu ri.
-- É, todos iguais.
Olhou pra cima, fez cara de "ué". Os olhos em mim (com isso eu nunca me acostumei).
-- Pra quê tanto livro igual?
-- É da empresa. Sobrou. Quer um?
Ele de novo no sofá, controle remoto, desenho animado, cachorro. Joguei um livro na cara dele.
-- Pára com isso, porra.
Eu ri.
-- Que que você tá tão feliz? - perguntou. - Arrumou mulher, é?
Era.

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