terça-feira, novembro 08, 2005

Parte 2

Sofia era bacana. Acho até que gostava de mim. Talvez se fosse antes, tivesse dado certo. Não lembro muito do seu rosto, lembro das coxas grossas que ela disfarçava com saias largas. E do riso, sempre gostei de mulheres que riem de verdade, que nem criança.
Naquele dia saí com Sofia. Fomos ao teatro, alguma peça da moda, uma merda, ficava um cara pelado no palco o tempo todo, de quatro. Acho que era pra ser uma vaca.
Antes, em casa, no quarto, eu me arrumava e ele sentado, não: deitado, deitado na minha cama com o cachorro. Eu vendo a roupa no espelho grande que reflete também a cama. Posição estratégica.
-- Põe a camisa verde.
-- Essa tá ruim?
-- Não, mas eu gosto mais da verde.
Botei a verde.
-- Você e a Tânia vão vir pra cá depois?
-- É Sofia.
-- Se você quiser eu saio.
Ele disse isso sem me olhar, parecia distraído, brincando com o cachorro. E não foi nada, nenhum tom de voz, nenhuma inflexão, nada, ainda assim, alguma coisa.
-- Não, não precisa.

* * *

Sofia já tinha estado em casa algumas vezes. Somado, não davam vinte minutos. Eu sempre arrumava um jeito de ser rápido. Nunca gostei de gente na minha casa. Nem meus amigos me visitam muito. Por isso é tudo tão estranho.
-- O cachorro não gosta da sua namorada - ele disse uma vez. Era mentira, quem não gostava era ele.
-- Não é minha namorada.
Um dia inventei um jantar pra ela. Não lembro porque, mas teve um motivo. Preparei um macarrão, que homem só sabe mesmo cozinhar macarrão, deixei tudo pronto e me arrumei. Era pra ele sair. Ele tinha dito que ia sair. Eu tinha dito:
-- Sofia vem jantar em casa amanhã.
Estávamos tomando café da manhã, ele parou o pão com manteiga no meio do caminho e me encarou. Sério.
-- Você tá me comunicando que é pra eu não estar aqui?
Não respondi. Ele, os olhos fixos em mim. Nunca me acostumei com seus olhos.
-- Não precisa nem pedir, - o pão com manteiga retomou o caminho - eu vou sair com uns amigos da faculdade.
Era mentira, eu sabia que era. Ele não tinha amigos da época da faculdade. Ele não tinha amigos.

* * *

Era pra ele sair. Sofia ia chegar às oito. Ele disse que ia ao cinema, sessão das sete e meia, depois pra Lapa ou algum lugar desses, não lembro direito. Sete horas e ele ainda no sofá vendo tv. Sete e vinte ele resolveu tomar banho. Sete e cinqüenta ele saiu do banho. Sete e cinqüenta e cinco o interfone tocou. "Fudeu" pensei. Lembro de ter pensado isso e depois ter me perguntado por quê.
-- Oi Sofia.
-- Olá!
Ele entrou na sala, sem camisa, descalço, com cara de "perdi a hora".
-- Ah, oi Sofia. Você já chegou?
-- É - ela riu - cheguei meio cedo.
-- Eu já tô de saída - ele disse pra mim, olhando pra mim. - Acho que perdi o filme.
-- É, perdeu - eu estava irritado.
Sofia era bastante educada. O tipo da pessoa que acha que todos podem ser amigos e que realmente acredita que estranhos são só amigos que você ainda não conheceu. Foi por isso que ela disse:
-- Ah, se você já perdeu o filme, então fica e janta com a gente.
Ele olhou pra mim.
-- Posso?
Os olhos em mim.
-- Claro.
Não é que o jantar tenha sido uma merda. Não foi. Não de todo. E depois daquele dia eu ainda saí com ela mais umas duas vezes. Ou três, não lembro.

* * *

Tirei os óculos, levantei pra fechar a cortina. Não, espera, ao contrário. Fechei a cortina, deitei e tirei os óculos. Ordem, tudo na vida é uma questão de ordem. Ah sim, apaguei a luz, só então deitei. Estava frio, eu lembro do cobertor. Quase dormindo, enrolado no cobertor. Barulho de leve, nem ouvi. "Quê?"
-- Posso dormir aqui? Tá frio na sala.
Mesmo no escuro adivinhei sus olhos.
-- Claro.
Foi a primeira vez.

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