sexta-feira, outubro 31, 2008

Receita

Pegue uma matriz de tamanho médio já previamente lavada em água corrente. Ajunte um cabide de flores com cheiro de chuva e deixe descansar por meia hora. Numa vasilha à parte ponha um molho de crases, vinagre, dois pés de meia de lã e um punhado de melancolia. Misture bem. Recomenda-se não usar batedeira para evitar o efeito estufa. Após bem misturado, junte na vasilha a matriz encabidada. Se desejar, pode temperar com azeviche. Leve ao forno à temperatura baixa num refratário amarelo por 3 horas. Serve 6 a 8 pessoas.

sábado, agosto 02, 2008

A fuga

Acordou e ainda era noite. Levantou-se com cuidado, não queria fazer nenhum ruído. Procurou os chinelos no escuro, tateando o chão com os pés. Abriu a porta do quarto devagar e, se guiando apenas pela pequena claridade de meia lua que entrava pela janela, seguiu pé ante pé pelo corredor da casa. Quase tropeçou na ponta do tapete e teve que sufocar um grito quando deu uma topada no rodapé. Já na sala, uma última olhada em volta, em tudo. Resoluta, pegou as chaves no prego da parede, abriu a porta e ganhou as ruas.

terça-feira, julho 15, 2008

Umas saudades

eu ando com saudade
de tanta coisa boba
de tanta coisa-pouca
que nem dá pra explicar

é uma saudade estranha
de um tempo mais difícil
do sopé da montanha
do início do chão

das palavras insanas
das risadas sacanas
de ficar em silêncio
e andar por aí

é saudade da gente
e do monte de gente
que já foi "a gente"
um dia pra mim

segunda-feira, julho 14, 2008

A carta

-- Fernando! Ô Fernando! Espera, cara!
Fernando vai na frente, andando rápido e pisando duro, cortando a praia em direção ao mar. Guilherme agora corria, tropeçando na areia.
-- Porra, Fernando! Calma! Meu pé tá machucado, esqueceu?
Fenando parou, se virando para o amigo:
-- Ué, e tá vindo atrás de mim por quê então?
-- Que que foi cara?
-- Que que foi o quê?
-- Por que você saiu correndo desse jeito?
-- Eu não saí correndo, só não tava a fim de ficar lá. Você não precisa vir comigo, ué. Fica lá. Volta.
-- Que você não gosta da Luiza, é isso?
-- Que que tem a ver a Luiza?
-- Ela tava brincando, cara. Ela só falou aquilo da carta pra te irritar.
-- Eu não tô irritado – disse Fernando, sentando na areia. Guilherme sentou-se ao seu lado, em silêncio.
-- Eu não tô irritado – repetiu Fernando –, é ridículo esse negócio de carta.
Guilherme não respondeu. Pensativo, de cabeça baixa, traçava na areia pequenos desenhos com os dedos.
-- Se duvidar foi ela mesma quem escreveu - Fernando insistiu. - Ou então foi a Daniela.
-- Não foi a Daniela, cara - Guilherme respondeu.
-- E foi quem então?
-- Sei lá!
-- Pode ter sido a Paula também.
Guilherme suspira. Fernando enterrou as mãos na areia.
-- Você queria que fosse pra você a carta? - Guilherme perguntou.
-- Quê? Claro que não! Que coisa idiota.
-- Sei lá.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos.
-- Quem você preferia que tivesse escrito? - Fernando perguntou.
-- Caraca, para com esse assunto! - Guilherme se irritou.
-- Sério, você preferia a Luiza, a Daniela ou...
-- Daniela é minha amiga desde bebê, cara! Não foi ela!
-- ...ou a Paula?
-- Caraca, que saco...
-- Ou, sei lá, pode ter sido a Mariana, ou...
-- Você.
-- Quê? - Fernando olhou o outro, assustado. Guilherme não respondeu, fitava a areia, de testa franzida. Fernando baixou os olhos, confuso. Guilherme mirou o amigo com o rabo do olho e, num ímpeto, beixou-lhe a bochecha. Fernando riu, sem graça.
-- Não fui eu, você conhece minha letra – disse.
-- Eu sei que não foi você – Guilherme respondeu, sério.
Depois de alguns segundos de silêncio constrangido, Fernando chamou:
-- Tá a fim de ir lá em casa jogar?
-- Aham.

quarta-feira, junho 25, 2008

O pior poeta tem duas mãos

no livro que eu li tinha um poeta maneta
que fazia sanduíches perfeitos
e se eu rimar maneta com planeta
esse poema não dá jeito

nem sanduíche eu faço
mas também não sou maneta
daqui a pouco eu passo
o pior poeta do planeta

nem um vogon faria pior
eu tenho plena certeza
se bem que, pensando melhor
os vogons não são desse planeta

domingo, junho 22, 2008

A e B

A: Olha lá, tá vendo?
B: Hmmm.
A: Olha! Tá vendo?
(Pausa)
B: Tô, tô vendo. Que tem?
A: Você acha videoclipe ou comercial de cigarro?
B: Hmmm.
(Pausa longa)
B: Cigarro. Definitivamente cigarro.
A: Hmmm.

---- XXX ----

B: Que tá ouvindo?
A: Cassia Eller, por quê?
B: Cassia Eller? Por quê?
A: Foi o que eu disse.
(Pausa)
A: Rubens?
B: Oi?
A: Tô com fome.
(B suspira)
B: Toma, come.

---- XXX ----

(A na janela. B chega.)
B: Que tá vendo?
A: A chuva.
(Pausa. B olha pra fora.)
B: Tá frio, fecha isso.
(A fecha a janela)
A: Você já quis pular?
B: Que?
A: Pular. Você já quis?
(B fita A)
A: Não suicídio, só pular. Se você fosse cair em pé, você pulava?
B: Você pulava?
A: Pulava.

sábado, junho 21, 2008

Ode to the babel fish

i wish i had a babel fish
so i could understand everyone
everything would be like a open book
and i could read it all through
everything would make sense
i'd find all of the truth
if i had a babel fish
i wouldn't be so screwed

i think if i had a babel fish
i could go to every town
and meet every ifrit
that still sticks around
and when i'd ask them for one simple wish
they'd turn to me and say
ifrits don't grant wishes
but they do make a good lay

sexta-feira, abril 25, 2008

Tony



Leandra conheceu Tony num barzinho de Botafogo. A amiga de Leandra havia ido ao banheiro deixando-a sozinha, e Tony puxou conversa dizendo, em inglês, 'Oi, meu nome não é Tony.' Naquela noite Leandra se apaixonou. Começaram a sair juntos, em pouco tempo virou namoro firme. Tony a fazia rir, inventava mil estórias. Dizia que era um faraó, depois que era um médico chamado Fritz. Dizia que morava num castelo, depois numa igreja, depois num sótão. Tony era muito divertido, Leandra estava nas nuvens. Nas nuvens tão alto que caiu. Um dia a amiga disse que viu Tony com outra. Leandra não quis acreditar, brigou com a amiga mas resolveu tirar a estória a limpo. Contratou um detetive e descobriu tudo: Tony era um galinha, um mentiroso compulsivo e o pior, estava morto há anos! Leandra ficou inconsolável. Procurou a amiga e pediu desculpas entre lágrimas: 'Eu devia ter desconfiado daquele lençol, mas ele dizia que era uma doença de pele!'

quinta-feira, abril 24, 2008

terça-feira, abril 01, 2008

Español - lección #9

La muñeca

La muñe-ca
és muy ri-ca
ella di-ce
'te quiero, mamá'
y también
'te quiero, papá'
péro nun-ca
yo he oí-do
la muñe-ca
a cantar.

La muñe-ca
és muy hermo-sa
ella baila
pra lá y pra cá.
Le gusta la val-sa,
le gusta el tan-go
y también
el chachacha.
Todavi-a
la muñe-ca
ella non
sabe sambar.

quarta-feira, março 05, 2008

Com o tempo tudo se aprende

Não nevava, ainda não nevava. O frio era tanto que se pelo menos nevasse... Mas não nevava e a bem da verdade faltavam alguns graus ainda para neve, não é? Era. Não fosse o frio a distância não seria tão grande, pensou. Por outro lado, lá para o outro lado, o frio apenas diminuía as distâncias e os quatro anos pareciam perto como um ontem. E de novo esse sentimento familiar de ter saudade do que nunca viu. Quantos já? Foram três já. Foram três. Um ao menos não perdeu, um de quatro, com o tempo se aprende. Com o tempo tudo se aprende. Um guardado, um de quatro. Dois perdidos, certamente. O terceiro ela ainda hesitava em deixar escapar. Esse ainda procurava, talvez o frio. Forse. O frio traz melancolia. O um que ainda está, esse um vale a pena. Esse um faz valer a pena. O futuro é o futuro e com o tempo tudo se aprende.

Ontem sonhou que estava morta. Estava morta assim, de repente. Se deu conta 'estou morta'. Ainda se mexia, ainda andava e falava e pensava. E sabia que estava morta. No sonho, verificava a temperatura das mãos, examinava a rigidez dos músculos. Afinal, estava morta. Mortos são frios e rígidos, era questão de tempo. Com o tempo tudo se aprende, procurou um lugar confortável, deitou-se e esperou.

domingo, março 02, 2008

Poema tem que rimar - metalinguagem nóis sabe

Poema que não rima
É como cavalo sem crina
Mesmo sendo uma fraca rima
Como essa aí de cima
Pra mim só é poesia
Se tiver alguma rima.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

A rainha dos tritões

Seguindo a rua dos tritões
pra cima temos o chafariz
e pra baixo, além das lojas,
encontra-se a meretriz.

Com as unhas vermelhas
e sotaque afrancesado
ela espera paciente
um homem pra ser amado.

E amado é eufemismo,
que isso fique entendido,
porque o homem na verdade
quer mesmo é ser fudido.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

África (um conto sem propósito)

--- Você vai pra África?
Em pé ao meu lado, um menino de uns dez anos me encarava. Estava num desses cafés da moda com um casal de amigos, eu tinha acabado de mencionar que, sim, eu ia passar as festas de fim de ano na África com uma amiga.
--- Você vai pra África? -- o menino repetiu.
Era louro e tinha uma pequena cicatriz na testa.
--- Vou.
--- Meu pai tá na África -- ele disse. Tinha um ar feroz de criança que aprende cedo a se defender sozinha, e que contrastava com o azul vivo de seus olhos e o vermelho de sua boca.
--- Ah, que bacana.
--- É, ele é caçador. Ele caça tigre, leão, elefante, ele atira muito bem. Ele vai me ensinar a atirar também e aí eu vou caçar com ele.
--- Mas você não é muito novo pra caçar? Quantos anos você tem? -- perguntei.
--- Nove. Você tem medo de leão?
--- Eu tenho, você não tem?
--- Eu não, eu sou muito corajoso. Que nem meu pai.
Com a mão direita o menino traçava desenhos invisíveis na mesa enquanto falava. Parecia um pouco tenso. De vez em quando olhava para trás, na direção de um rapaz louro que falava ao celular; um irmão mais velho, talvez.
--- Se você achar meu pai lá, você diz pra ele voltar? -- ele pediu, com os olhos baixos, fixos na mesa.
--- O seu pai?
--- É, ele é que nem meu irmão lá -- apontou pro rapaz ao celular, -- só que é mais velho.
Levantou o rosto e me olhou.
--- Pede?
--- Peço.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Velha senhora - parte 4

Saí da casa da velha senhora levando comigo suas chaves. Não podia deixar seu corpo ali sozinho. Fui até a delegacia mais próxima e contei todo o ocorrido, desde minha saída de casa até o caos final. É claro que não acreditaram em mim, eu também não acreditaria se não tivesse acontecido comigo. Mostrei-lhes o ovo e me disseram que era só uma pedra. Com a minha insistência consegui que dois policiais me acompanhassem até a casa para ver o corpo. O cheiro de queimado já havia passado por completo, o que não me surpreendeu já que levei algumas horas para convencer a polícia. O que me surpreendeu foi o que eu vi no último quarto. Toda a fuligem, toda a fumaça havia sumido. O quarto estava limpo, como se nada houvesse acontecido. No chão, caída no mesmo lugar onde a havia visto, estava o corpo da velha. Não estava mais retorcido e negro de cinzas como antes. Em lugar disso, uma poça de sangue viscoso empapava seu vestido. Ao seu lado, uma pequena faca com um pássaro vermelho de asas abertas no cabo tinha a lâmina suja de sangue.
-- O que é isso? - me perguntaram os policiais. - Onde estão os sinais do fogo? Essa senhora foi assassinada!
-- Foi a fênix - eu disse. Estava em pânico. - Não fui eu!
Na delegacia me prenderam como suspeito. Encontraram minhas digitais na faca. Disseram que foi crime hediondo, um assassinato por motivo fútil. Pensaram que a matei pela pedra. A pedra vermelha - o ovo da fênix - foi coletado como evidência, deve estar arquivado em algum lugar da delegacia. Todo dia eu rezo para que meu julgamento venha logo. Sei que vou ser condenado, não me importa, só quero sair daqui, desta delegacia. Só quero sair daqui antes que o ovo choque, antes que a fênix renasça.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Velha senhora - parte 3

--- E então? -- ela perguntou. -- Quer saber como eu sei?
Tomávamos o chá em silêncio e eu buscava desesperadamente um modo de ir embora sem parecer grosseiro. Eu estava realmente desconfortável e não queria mais saber deste assunto. Mas a velha insistia.
--- Quer saber como eu sei que o ovo da fênix é vermelho e duro e frio como uma pedra?
Tive receio de olhar para ela; sabia que ela estaria sorrindo. Imaginei que talvez ela farejasse meu medo e confusão como certos animais. Fiz que sim lentamente com a cabeça.
--- Ótimo, eu sabia que sim -- deu um tapinha satisfeito nos joelhos. -- Vamos -- disse, pondo-se de pé.
Olhei para ela aturdido.
--- Onde? -- perguntei.
--- Ver o ovo da fênix.
Incapaz de desobedecer, me levantei em silêncio e a segui. A velha me conduziu por um corredor decorado com quadros mostrando os mais diversos tipos de aves e que me pareceu mais comprido do que o pequeno apartamento fazia supor. Comecei a sentir um cheiro de queimado que crescia conforme avançavamos em direção ao final do corredor. Junto com o cheiro me atacou uma forte dor de cabeça que parecia também aumentar a cada passo. Os estranhos pássaros nas pinturas pareciam me fitar com curiosidade. Ao final, em um nicho na parede, um pequeno pássaro empalhado me encarava com ar feroz. Em frente ao nicho havia uma porta fechada com várias trancas. O cheiro de queimado era intenso e percebi que vinha do quarto fechado. Minha cabeça latejava e senti a boca seca. A velha senhora virou-se pra mim e sorriu mais uma vez. Sem dizer palavra, sacou um molho de chaves e abriu as trancas da porta, uma por uma. Tentei lhe dizer que tinha desistido, que não queria mais ver nada, mas minha voz não saía. Eu suava, estava muito quente agora, e a dor me atordoava. Quando ela abriu a última tranca, a porta se escancarou. O quarto estava em chamas, o fogo cobria tudo, e em um canto estava um pequeno pássaro vermelho. Digo vermelho porque foi a cor que vi, na verdade parecia que o próprio pássaro era feito de fogo. O pássaro virou-se na direção da porta e seus olhos negros pousaram em mim e na velha. Então, abriu as asas que estavam cobertas de chamas, eram como que feitas de chamas, e voou na direção da porta, na nossa direção. Com o vôo as chamas do quarto se agitaram. Uma grande lufada de ar incrivelmente quente me atingiu e por alguns segundos foi impossível manter meus olhos abertos. Ainda de olhos fechados consegui cambalear de volta a sala, minha cabeça doía e pequenos círculos vermelhos e verdes dançavam em frente aos meus olhos, mesmo fechados. Me joguei no sofá e caí desmaiado.
Não sei por quanto tempo fiquei desacordado. Quando recobrei os sentidos, o cheiro de queimado vinha ainda forte do fundo do corredor. Olhei em volta à procura da velha, mas eu estava sozinho na sala. Segui cauteloso pelo corredor até o últmo quarto. O calor ali era intenso, a um canto vi o que parecia um corpo deformado pelo fogo. Imaginei que seria a velha. No centro do quarto, uma pequena pedra vermelha parecia intacta em meio à confusão de cinzas e carvão. Toquei-a com a ponta do sapato, sentindo o sapato em seguida com a mão: a pedra estava fria. Peguei-a com cuidado e a guardei no bolso.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Velha senhora - parte 2

--- Quer saber como eu sei? -- ela havia dito. -- Como eu sei que o ovo da fênix é vermelho e frio?
É claro que eu quis. Como eu disse, já havia sido fisgado. Como em um sonho, a segui até sua casa.
--- Vou te mostrar -- ela havia dito.
O apartamento era pequeno. Pensando melhor, não era pequeno, apenas era muito menor do que deveria ser para acomodar todos os móveis e cortinas, quadros e porta-retratos, badulaques e abajures e tapetes. Um apartamento que dizia que seu dono se vira forçado a descer de padrão de vida mas não quis se desfazer de nada. Apenas desmontou o apartamento anterior e o remontou em um com talvez metade do tamanho do original.
--- Chá?
Tive um sobressalto. Estava tão absorto olhando em volta que me esqueci da velha. Parada pouco atrás de mim, ela aparentemente supervisionava minha inspeção da sua sala.
--- Chá? -- repetiu. A velha sorria, parecia satisfeita. Pensei que devia ser solitária. Será que tinha filhos, netos?
--- Pode ser, obrigado -- respondi.
--- Sente-se, fique à vontade -- ela apontou uma poltrona com uma almofadinha bordada. -- Vou esquentar a água -- acrescentou, dirigindo-se para dentro da casa.
Pouco depois voltou trazendo uma bandeija com duas xícaras e uma compoteira de cristal com biscoitos.
--- Biscoitos amanteigados de Petrópolis -- anunciou. -- Aceita um?
Aceitei e ela saiu de novo, retornando em seguida com uma caixa cheia de saquinhos de chá.
--- Qual sabor prefere?
Em tudo a velha senhora era uma perfeita anfitriã. Educação à moda antiga, pensei.
--- Chá preto -- respondi.
Retirou dois saquinhos da caixa, deixando-os na bandeija e sumiu de novo na cozinha. Comecei a procurar uma desculpa para ir embora. Era claro que a estória do ovo da fênix tinha sido uma isca. Uma senhora carente buscando companhia. Resolvi que tomaria o chá e me despediria dizendo que tinha um relatório para terminar, o que não era nenhuma mentira.
Ela voltou trazendo um bule de chá com água quente que despejou nas duas xícaras. A xícara era tão fina que fiquei com medo de quebrá-la e o próprio bule parecia de prata. Minha avó tinha três tipos de louça: a do diário, a de visitas e a de visitas de cerimônia. Estava claro que a velha senhora usava comigo o terceiro tipo de louça. Comecei a sentir que havia algo estranho. Será que ela não tinha receio de levar desconhecidos para casa? E se eu fosse um ladrão? Olhei-a de esguelha. Ela retribuiu meu olhar com um sorriso. Tive um calafrio. Um mau pressentimento começava a se apoderar de mim.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Velha senhora - parte 1

--- Na verdade -- ela dizia em tom de confidência, aproximando seu rosto do meu, -- na verdade, o ovo da fênix é uma pedrinha vermelha e fria.
Ela se recostou no banco satisfeita. Eu não soube o que responder. Percebendo minha confusão, a velha explicou.
--- Eu sei, todo mundo pensa que o ovo é preto e quente como um naco de carvão. Mas não é, -- aproximou o rosto novamente. Pude sentir seu hálito e me perguntei quantos anos teria -- é vermelho e frio e parece uma pedra.
Existem pessoas que são verdadeiros imãs de malucos e excênticos. Pessoas que não dão dois passos sem ser abordado por alguém que tenha sido abduzido por etês ou descoberto a cura do autismo. Eu não sou uma dessas pessoas. Me sentei no banco para amarrar o tênis. Normalmente eu apoiaria o pé em alguma grade (tenho certo nojo de bancos de rua) mas o banco estava por perto e havia uma senhora sentada nele. Uma senhora distinta, como se diz, de classe média decadente, uma dessas senhoras que já foram ricas mas ao perderem o marido, perderam também o resto. A senhora sorriu pra mim; eu lhe sorri de volta. Sentei, amarrei o tênis.
--- Dia bonito, não é? -- ela comentou.
--- É -- respondi.
--- Bom que o frio passou.
--- Está mais quente mesmo.
Eu estava desconfortável. Não costumo falar com estranhos. Depois de alguns segundos pareceu que ela não iria continuar a conversa. Fiz menção de levantar e ela me cutucou de leve com o cotovelo.
--- Está vendo aquele pombo?
--- Aquele? -- perguntei.
--- Aquele ali, o menorzinho.
--- Ah sei -- fiz. E como ela não continuasse, olhei pra ela -- o que tem ele?
--- Não é ele, é ela -- a velha respondeu. Aproximou o rosto do meu e, baixando a voz, continuou -- é um pomba e tem um ninho ali naquela árvore.
Fique surpreso, nunca vi um ninho de pombo.
--- Ninho? -- duvidei -- E como a senhora sabe?
--- Tem um ninho sim -- ela confimou. -- Nunca viu ovo de pombo?
Fiz que não com a cabeça.
--- É desse tamanho assim -- afastou os dedos para mostrar -- e cheio de pintinhas.
Vendo minha desconfiança, ela continuou:
--- Eu conheço tudo que é tipo de ovo. Meu marido era ornitólogo. Sabe o que é isso? Que estuda aves. Ovo de ema, por exemplo, é desse tamanhão assim -- fez com as mãos -- e é branco.
Aí eu percebi que tinha sido pego. Eu estava sentado em um banco de rua ao lado de uma senhora desconhecida falando sobre ovos. Tinha saído de casa para tomar um suco. Ia tomar o suco e voltar pra casa onde um relatório me esperava para ser terminado. O suco na verdade era um pretexto: eu só queria sair de casa um pouco.
--- Já ouviu falar de fênix? -- ela perguntou.
Olhei para ela confuso. Claro que eu sabia o que era a fênix.
--- Fênix é o mítico pássaro de fogo que morre e renasce de suas própria cinzas a cada era do mundo -- ela explicou. Falava como se tivesse memorizado um verbete de enciclopédia. -- A cada era ela morre e seu corpo se desfaz em cinzas e das cinzas surge um ovo. O ovo da fênix.

* * *

terça-feira, dezembro 11, 2007

Poemas de tomar conta de prova

Uma hora se passou
e depois mais uma hora
e a estas duas horas,
ainda meia se juntou.
Mas a hora de ir embora,
esta ainda não chegou.

* * *

Eles fazem a prova devagar.
Quão terrível é Galois?
São cinco questões apenas,
sendo duas quase iguais!

A de verdadeiro ou falso é de graça
e a última é só uma conta.
Só duas precisam de raça.
Será que esta turma me desaponta?

* * *

Eles pensam, pensam e pensam.
Escrevem, escrevem, escrevem.
Pensam um pouco mais
e apagam com vontade.

Será que a borracha
que se espalha pelo chão
é sinal de que nessa prova
eu também errei na mão?

* * *

Uma hora ainda falta
pro suplício terminar;
uma hora inteira falta
pra eu poder ir almoçar.

sábado, dezembro 08, 2007

Cuidado: Frágil

Ele pensou que ia ser fácil. "Fácil, fácil" pensou. "Molezinha, canja de galinha" pensou, e riu porque lembrou da infância, do "é canja, é canja, é canja de galinha, arranja outro time pra jogar na nossa linha!" E ele sempre na torcida com as meninas, nunca jogando. "Você tem a saúde frágil" a mãe dizia, "não pode fazer esforço." Porque ele teve pneumonia quando era pequeno, quase morreu. Ele não se sentia frágil, na verdade não, mas sempre tinha medo que um esforço maior o matasse. E quando ele fazia alguma coisa, digamos, alguma atividade física, e ele sempre fazia atividades físicas, ainda que não jogasse futebol com os garotos, quando fazia e seu coração disparava a bater rápido, tão rápido e ele ficava com medo que parasse. Sempre imaginava que ia parar e ele ia morrer e a mãe ia descobrir e dizer "mas eu não disse que você não podia fazer esforço, atividade física!" e a mãe ia chorar até ficar com os olhos inchados e o nariz vermelho, que nem quando a avó dele morreu.

Olhou mais uma vez em volta. Ninguém, tudo parado. Abriu devagar a janela. Passou uma perna, depois a outra. De um pulo estava dentro da casa. Encostou a janela e acendeu a lanterna. Sabia onde ficava o cofre, até a combinação o burro tinha dito a ele. Burro. Pé ante pé seguiu até o escritório e nem precisava de tanto cuidado; o velho estava na Europa e ainda disse que trazia um vinho pra ele. "Vinho bom, não é essa porcaria que você bebe." E ele riu. Pegou tudo que achou no cofre e pôs na mochila, até uns papéis que deviam ser ações, sei lá, gente rica tem sempre ações. Saiu como entrou, tomando o cuidado de não mexer em mais nada. Saiu e desatou a correr. O coração acelerado da corrida e ele ofegando, correndo e rindo. "Frágil nada."